Uma associação de Peniche lançou o projecto de construção de um veleiro destinado a expedições científicas. Na sua viagem inaugural, tenciona-se aliar a investigação científica com a evocação de um explorador português do século XVII, cujas viagens ainda hoje estão envoltas em mistério.
Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Fernão de Magalhães, nomes de grandes navegadores portugueses que muita gente tem na ponta da língua. E David Melgueiro? Praticamente ninguém ouviu falar deste navegador que, segundo escassa documentação histórica, terá sido o primeiro a aventurar-se na travessia das águas geladas do Árctico através da Passagem do Nordeste, entre 1660 e 1662. Mais de 350 anos depois, um projecto ambicioso pretende seguir o rasto, entre 2016 e 2017, dessa viagem lendária – no duplo sentido de lenda e de admirada –, que inclui a construção de um veleiro de raiz destinado ao serviço da comunidade científica.
A ideia é de José Mesquita, antigo comandante da marinha mercante e de pesca, que para tal acaba de criar a Associação David Melgueiro, em Peniche. Esta terça-feira, o projecto teve a primeira apresentação oficial, no Museu do Oriente, em Lisboa, e está agora em curso a campanha de angariação de fundos. Falemos do navio, do navegador David Melgueiro, da sua viagem no século XVII e daquela que agora se quer recriar numa expedição de 17 meses, com passagem por 15 países e 28 portos de escala e cerca de 30 cientistas a bordo, que se dedicarão a estudos de oceanografia, meteorologia e das alterações climáticas.
Por exemplo, o Programa Polar Português (Propolar), coordenado por Gonçalo Vieira, irá monitorizar o solo permanentemente congelado — permafrost, que é um reservatório de carbono e, ao descongelar com o aquecimento global da Terra, pode acelerar ainda mais esse fenómeno. Esta equipa contribuirá com os dados que recolher para a Rede Global Terrestre para o Permafrost, na qual participa. Já o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) irá adquirir dados do sistema atmosfera-oceano-gelo para a validação de modelos de previsão meteorológica e modelos climáticos. “O IPMA está interessado na previsão do tempo e na evolução do clima”, explica o meteorologista Pedro Viterbo. “O Árctico condicionou fortemente o Inverno anómalo de 2013-14 [em Portugal]. Sem compreendermos o Árctico, não teremos uma boa previsão do tempo a cinco, seis, sete, oito, nove dias, como ambicionamos neste momento”, acrescentou, referindo-se depois às alterações climáticas. “É no Árctico que se manifesta mais cedo o impacto das alterações climáticas. Estamos a ver [aí] o que vai acontecer nas latitudes médias daqui a dez a 20 anos.”
À volta três milhões de eurosO veleiro
David Melgueiro terá 24 metros de comprimento, dois mastros, casco em aço e convés em aço inox. Irá ser projectado pelo arquitecto naval português Tony Castro, que trabalha em Southampton, Inglaterra, e será construído nos Estaleiros Navais de Peniche. Custará entre dois a 2,5 milhões de euros, a que se juntará outro milhão de euros de custos da expedição em 2016 e 2017.
A sua construção coloca desafios de engenharia: o veleiro terá de aguentar as tempestades das latitudes elevadas, as baixas temperaturas do Árctico, a pressão do gelo no casco, a navegação em zonas mal cartografadas e onde é difícil obter informação dos satélites que permitem saber a posição exacta.
Além disso, terá de ser capaz de produzir energia de forma autónoma — integrando painéis solares nas velas —, conservar alimentos frescos por períodos longos, ter habitabilidade num ambiente inóspito e equipamentos para trabalho científico. Neste último aspecto, uma equipa de robótica marinha do Instituto Superior Técnico de Lisboa está a desenvolver veículos robóticos destinados à exploração das paragens por onde navegar o David Melgueiro — desde veículos operados de forma remota, ligados por um cabo ao veleiro, até veículos autónomos de superfície e submarinos.
“O objectivo deste projecto é dar à sociedade civil portuguesa um instrumento para investigação científica, acessível às universidades com custos relativamente baixos e benefícios grandes. O frete do navio é muito inferior aos dos navios oceanográficos normais”, diz José Mesquita. “O navio pode ser utilizado pelas empresas e universidades como plataforma de ensaio de novas tecnologias, novos produtos e novos materiais”, sublinha ainda.
No calendário do projecto, os dois a 2,5 milhões de euros terão de ser angariados até ao final deste ano, para que a construção do veleiro possa avançar em 2015 e estar concluída até ao final desse ano. Se tudo correr bem, no segundo trimestre de 2016 terá chegado o momento da grande aventura, a expedição
Marborealis, para se ir atrás dos passos de David Melgueiro. E não só. “A viagem de David Melgueiro é quase uma lenda”, diz José Mesquita.
Sabe-se que o navegador nasceu no Porto, em data incerta, e morreu no Porto, em 1673. Que ecos dessa viagem lendária que lhe atribuem a primeira travessia da Passagem do Nordeste chegaram então até nós? Diz-se que David Melgueiro, ao serviço da Marinha holandesa, partiu do Japão em 1660 ao comando do navio
Padre Eterno.
http://www.publico.pt/ciencia/noticia/david-melgueiro-na-rota-da-lendaria-viagem-do-navegador-portugues-pelo-arctico-1631515