O ESOTERISMO NA ARTE PORTUGUESA
As palavras "esoterismo" e "exoterismo", que por vezes confundem os leitores menos prevenidos, designam uma oposição relativa entre o que, de uma forma geral, é entendido por toda a gente e aquilo que, de algum modo, exige uma "iniciação" por se tratar de assuntos especializados ou por existir uma vontade de ocultação de que podem ser exemplos os viários
escalões (nos "profissionais" que querem guardar os segredos da profissão) ou, num outro extremo do "espectro" de ocultação, no meio dos ladrões "profissionais" e outros fora-da-lei. Mas, no sentido mais usual, o termo esoterismo é usado para designar temas relacionados com religiões, movimentos místicos ou filosóficos, doutrinas, disciplinas ou obediências secretas menos divulgados, exigindo uma informação e uma formação prévias.
Nesta perspectiva, um retábulo de igreja é uma obra exotérica porque pretende dirigir-se a toda a gente e ser entendida por toda a gente que conheça minimamente a temática religiosa; torna-se esotérica a partir do momento em que os visitantes da igreja ignorem as significações religiosas e simbólicas do retábulo ou estas sejam de algum modo ocultadas. Quanto ao espectador familiarizado com as doutrinas da religião em questão e com os respectivos símbolos, não terá dificuldades de maior em apreender a significação do mesmo retábulo.
Certamente isto é óbvio para muitas pessoas; mas é também uma fácil desculpa para muitos "turistas" da arte não fazerem o mínimo esforço de compreensão e ocultarem a sua ignorância, acusando a arte de não possuir nem procurar qualquer significação para lá do mero divertimento (?) ou de um jogo gratuito desprovido de objecto, n180.jpg de regras, de qualquer substância significante.
Os esoterismos e os respectivos códigos simbólicos (ou de cariz intencionalmente oculto aos não iniciados) são por natureza desconhecidos do grande público. No nosso pais, onde a história da arte e a investigação dos movimentos do pensamento artístico (nos próprios aspectos de inventariação, mesmo antes de se chegar aos seus aspectos temáticos, programáticos, religiosos, filosóficos, estilísticos e aos seus entrosamentos locais e globais) ainda são pobres e muito recentes, afigura-se difícil arriscar vistas panorâmicas e conclusões generalizadas. A questão torna-se ainda mais delicada no caso de buscarmos justamente aquilo que se quer menos perceptível para a generalidades das pessoas. Assim, é prudentemente que devemos avançar na avaliação das "pistas" suspeitas ou das revelações recentes. Mas essa prudência não exclui o interesse vivíssimo e as descobertas que excitam a inteligência e o sentimento daqueles que se interessam ou se apaixonam por matéria tão excitante – ou tão importante para os homens sequiosos de uma perspectiva ou de uma visão mais completa e mais profunda da arte e da alma humana.
Profetismo e esoterismo
É também preciso saber que as artes não imitam simplesmente o que é visível, mas elevam-se rapidamente até aos princípios formadores donde provém a natureza.
Plotino, Enneada, V, B, 1
É digno de nota, por ser único e inesperado, que quase três séculos e meio depois da vaga inaugural dos escritos rosa-crucianos – os manifestos Fama Fraternitatis, Confessio Fraternitatis e, sobretudo, o romance As Bodas químicas de Christian Rosenkeutz, atribuído a Valentin Andrex, e toda a literatura que daí decorre –, é digno de nota, que Fernando Pessoa, um dos maiores poetas portugueses e europeus do século XX, tenha escrito três sonetos intitulados "No túmulo de Christian Rosenkreutz e que o tema do corps beau et glorieux do Mestre simultaneamente corbeau, corvo, e "corpo de gloria" e do Livro ocluso que segura contra o peito – contendo um tesouro precioso – tenha voltado à tona da literatura do nosso tempo. Num estilo perfeitamente moderno, no melhor sentido da palavra, o tema célebre reaparece aos nossos olhos não como uma evocação ou a celebração de uma efeméride literária, mas como uma forma de meditação poético-filosófica inédita, a um tempo bela na sua linguagem contida, rigorosa, quase matemática, e simultaneamente densíssima e enigmática no mistério mais profundo das suas significações: meditação actual, em três andamentos, sobre a morte como um acordar do sonho da vida, sobre o que a alma pode conhecer da Verdade e sobre Deus enquanto Homem de um outro Deus maior. No nº 8/9 (1978) da revista Exil, André Coyné publicou um longo estudo intitulado "Fernando Pessoa e o sentido da poesia", texto de rara inteligência sobre a obra poética do autor da Mensagem.
"Pessoa desejava que «o pensamento se transcenda a si próprio» para poder estabelecer-se no seu «outro lado»; desejava não avançar ainda mais, corno parece desejar a maior parte dos escritores «modernos», no «sentido da História» – mas sim transcender todo o devir (atravessar o racionalísmo em vez de o afastar na via da razão metafísica, intima, profunda, abissal» das coisas).
A imagem primeira do cadáver do Mestre segurando um livro misterioso é, como todos os motivos arquetípicos, rico de conteúdos paradoxais e de tautologias "em espelho". Começa-se por descobrir a imagem fundadora do morto que sabe, opondo-se ao morto saber do vivo. Por um lado, o Livro enquanto cristalização de uma voz que definitivamente se calou. cuja mensagem se tornou transcendente mercê desse silêncio irreversível, porque nos fala do outro lado da morte. Por outro lado, essa palavra silenciosa que nos chega do não-dito transporta no seu ventre no seu túmulo – a consciência, enquanto experiência vivida, de um passado revoluto transformado num saber sempre futuro. O livro contem um saber absoluto nessa Palavra para sempre não-dita, (isto é, que só será dita no Absoluto, no fim dos tempos), do mesmo modo que o peito do Mestre morto contém um coração incorrompido que simboliza, que é, o próprio sopro, o spir da Palavra.
Os antigos egípcios sabiam-no: transformavam os sarcófagos em verdadeiros livros os, cobertos de uma escrita impronunciável: "livros" que manifestavam a vida do morto, a sua imago, a tecitura da sua "escrita", a sua gramática, a força seminal da formalização, a estrutura individual de um afloramento do Ser, numa palavra, a sua mensagem; continham um cadáver – o conteúdo dessa mensagem.
Mas esse corpo sem vida, mumificado, era por seu turno o sarcófago de outro corpo, ou o livro de um outro texto interior, que o mistério da ressurreição esclarecerá, transformando-o em corpo de luz. Esta Luz, ao surgir, apagará o livro, pronunciará enfim a Palavra impronunciável, o Sentido para além do sentido:
Calmo na falsa morte a nos exposto,
0 Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
Já Bernard Gorceix, no prefácio que escreveu para o livro La Bible des Rose-Croix (P .U. F.,1n187.), chamara a atenção para o facto de o tema do túmulo misterioso, contendo um corpo morto e um tesouro precioso, ser relativamente frequente na literatura da Idade Média e na literatura alquímica: cita o exemplo da Tabula Chemica, de Ibn Umail, uma obra bem conhecida do século XVIII, em que se conta a visita a uma casa subterrânea cujas paredes estão cobertas de frescos e onde um ancião defunto aperta nas mãos um livro ilustrado. Gorceix cita ainda a lenda que circulava no tempo de Valenlin Andrex, segundo a qual ter-se-iam descoberto, debaixo do grande altar de uma igreja de Erfurt, as obras de Basílio Valentin.
Uma das lendas – ou factos históricos – que estariam por detrás do romance de Valentin Andrex foi contada a Wittemans por um certo Roesgen von Floss, respeitável junker batávio; nas sequelas trágicas do assassínio, em 1208, do legado pontifical Pierre Castelnau, desencadeou-se uma perseguição feroz – sob o pretexto de exterminar os Albigenses – movida por Inocêncio III à família Roesgen Germelshausen, que foi massacrada barbaramente e cujo castelo foi destruído e saqueado. Christian, o filho mais novo dos Germelshausen, teria sido o único que escapou com vida, fugindo para o Oriente, onde foi iniciado nos antigos segredos dos Rosa-Cruz. De regresso à Europa, Christian renunciou ao nome de família e tomou o de Rosenkreutz.
O rosicrucianismo, mau grado os antecedentes remotos que alguns lhe atribuem, entrou na história com os chamados Manifestos Rosa-Cruz, publicados anonimamente em Cassel nos anos de 1614 e 1615: a Fama Fraternitatis e a Confessio. Estes manifestos evocavam um herói mítico, o "Pai" CRC, ou Christian Rosenkreutz (Cristão Cruz Rósea), presumido fundador de uma ordem ou fraternidade que assim se afirmava reactivada. CRC teria vivido 106 anos. Segundo a Fama Fraternitatis, o túmulo, cujo paradeiro estava esquecido) foi descoberto 120 anos depois da sua morte por um dos seus sucessores que era arquitecto; encontrava-se numa cripta de planta heptagonal em cujo centro, numa espécie de altar, se exibia urna placa de cobre amarelo com os seguintes dizeres:
A.C.R.C. HOC UNIVERSI COMPENDIUM VIVUS MIHI SEPULCRUM FECI
Aos dois manifestos de Cassel, que despertaram grande excitação na época, veio acrescentar-se em 1616 um estranho romance alquímico, As Bodas Químicas de Christian Rosenkreutz, cujo herói parece ligado a uma ordem que tinha por emblema uma cruz vermelha e rosas da mesma cor. O romance foi escrito por Johann-Valentin Andrex, que veio ao mundo em 1586, em Wurttenberg, neto de um distinto teólogo conhecido por: o Lutero de Wiirttenber.2n189.jpg (50795 bytes)
Valentin Andrex estudou na Universidade de Tubingen. As Bodas teriam sido escritas a partir da sua autobiografia, por volta de 1602 – 1603, isto é, quando o precoce autor contava 16 ou 17 anos.
Ao que parece, antes de 1614, e, segundo alguns, até mesmo entre 1602 e 1603, já circulavam manuscritos da Fama; uma das hipóteses é que o pai de Johann-Valentin, Jacob Andrea: já falecido em 1601), tenha sido o autor das Bodas, talvez com a colaboração do seu circulo de amigos. Em 1603, com 17 anos, o jovem Johann-Valentin compôs duas peças de teatro de estilo isabelino.
Fernando Pessoa conheceu perfeitamente o nome de John Valentine Andrea e as Bodas Químicas de Christian Rosenkreutz, como o demonstram dois fragmentos do espólio publicados por Yvette Genteno no seu livro Fernando Pessoa e a Filosopa Hermetica (Ed. Presença, Lisboa, 1985). São eles o fragmento 54A – 58, onde lemos: dblquote Há registos de que John Valentine Andrea escreveu, por gracejo, com apenas 16 ou 17 anos, as Bodas Químicas de Christian Rosenkreutz. Será difícil contestar que ele tenha escrito este livro.n190.jpg
Contudo, o livro, escrito nessa idade e (se acreditarmos nas suas palavras, não há razão para duvidar delas) como gracejo, é uma grande história simbólica, válida em si. No fragmento 54A – 59, Fernando Pessoa aborda o mesmo problema dos cerca de 17 anos de idade de Johann-Valentin Andrex e comenta que "a obra é de um género que tornaria isto normalmente impossivel".
O teatro isabelino exerceu grande influência sobre Andrex, que visitou Wurttenberg por ocasião da investidura do duque Frederico I – anglófilo muito interessado em alquimia e ocultismo – na Ordem de Cavalaria da Jarreteira (Order of fhe Garter), cerimónia que teve lugar em Estugarda em 1603; a embaixada enviada pelo rei inglês Jaime I incluía músicos, comediantes e actores, que seguidamente representaram noutros lugares do ducado,n191.jpg incluindo a Universidade de Tubingen, onde estudava então o jovem Andrex. As suas Bodas Químicas reflectem o brilhantismo dessas festas e cerimónias, bem como o fascínio das representações teatrais que então tiveram lugar.
Nesse mesmo ano, foi dedicada ao duque Frederico uma obra intitulada Naometria, da autoria de Simão Studion (manuscrito nunca publicado, guardado na Landesbibliothek de Estugarda): trata-se de um texto extensíssimo, profético-apocalíptico, que usa a numerologia baseada nas descrições bíblicas das medidas do Templo de Salomão e que, a partir da simbologia das datas bíblicas e da história europeia, traça profecias acerca de acontecimentos futuros, tais como o fim do reino do Anticristo, a queda do papa e da religião de Maomé e o começo do Millenium, (que, na sua interpretação, ocorreria por volta de 1623). Andrex conheceu a obra de Simão Studion e refere as suas profecias num livro publicado em 1619, Turris Babel, no qual as relaciona (de modo obscuro, para usar as palavras de Frances Yates, grande especialista do rosicrucianismo) com os escritos de Joaquim de Flora, Santa Brígida, Lichtenberg, Paracelso, Guillaume Postel e outros illuminati.
O tema do livro fechado que o cadáver incorrupto de um homem virtuoso, ou mesmo santificado, aperta nas mãos – livro e cadáver em cuja oclusão, que a morte selou, está contido um saber esotérico ou profético que só será conhecido pelos homens quando Deus o quiser – reaparece, sob outra forma, no políptico conhecido por Tábuas de S. Vicente de Fora, do Museu de Arte Antiga de Lisboa, obra-prima da pintura portuguesa do século XV atribuída a Nuno Gonçalves; com a única diferença de que, nessas tábuas, não se trata do "belo corpo" de um santo falecido, mas de um ressuscitado – talvez S. Vicente – pintado duas vezes: uma vez no painel central do lado esquerdo do observador, apresentando ao rei um livro aberto (saber esotérico), e no painel central, do lado direito do observador, tocando, com a mão direita, o peito de um cavaleiro ajoelhado a seus pés; neste painel, o santo tem o livrou fechado debaixo do braço (revelação esotérica). Este Livro ocluso, para utilizar as palavras de Fernando Pessoa, evoca o "Livro T", que Christian Rosenkreutz aperta contra o peito e de que fala a Fama Fraternitatis.
Terá o Mártir Vicente vindo do mundo além-morte para nos comunicar uma mensagem Ou tratar-se-á de um outro enviado, quiçá Melquisedeque, ou o lendário Preste João, ou talvez ainda a hipostase divina que há-de vir em breve e a que chamam Paracleto, o Consolador (ou Paraclito, no dizer do povo)? Trata-se, em qualquer caso, de uma figura divina, de um mensageiro ou de um anjo vindo do Além que mostra ao rei ajoelhado o livro aberto, ou a palavra dita, visto de perto, pode ler-se nas páginas um fragmento do Evangelho de João; à direita, simetricamente, a mesma figura misteriosa mantém o livro fechado sob o braço e toca, com a mão direita, o peito do cavaleiro, também ajoelhado.
Há ainda um outro exemplo português, que pouquíssimos conhecem, do mesmo tema arquetípico, do maior interesse no nosso contexto por ser próximo do modelo criado por Johann-Valentin Andrex: trata-se do Beato Amadeu, ou Amadeus, do século XV, cuja lenda é semelhante e precede a de Chrislian Rosenkreutz, escrita dois séculos depois. Lenda que se mistura à verdade histórica, porque o Beato Amadeu existiu deveras.
Um santo esquecido
Quinto filho de uma família nobre, o seu nome era João de Meneses da Silva e teria nascido em 1431 em Ceuta, então possessão portuguesa; ou, segundo Frei Luís de Sousa, na História de S. Domingos; citado por Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, tomo II, Lisboa, 1992, 3ª edição), em Campo Maior, Elvas.n199.
Parece ter frequentado na adolescência o palácio do rei D. Duarte, apaixonando-se loucamente pela princesa Leonor. Mandou gravar numa medalha o desenho de um altar com a legenda Ignoto Deo (a um deus desconhecido), declarando assim, e simultaneamente ocultando, a sua paixão pela princesa, que partiria em breve para Itália, onde o papa Nicolau V celebrou o seu casamento com o imperador da Alemanha Frederico III. A lenda acrescenta que o jovem apaixonado viajou clandestino numa das naves da armada que levou a infanta a Roma, como indica Jorge Campos Tavares no Dicionário de Santos (Porto, 1990). A seguir a esta irrevogável separação, que marcava o termo de um amor impossível, João de Meneses da Silva mudou o nome para Amadeu e ingressou no Convento de Nossa Senhora de Guadalupe, na Ordem de S. Jerónimo, daí passando para o Convento de Cremona, onde permaneceu uma dezena de anos. As penitências e a austeridade da sua vida cedo criaram em torno dele uma aureola de santidade. Teve então uma visão da Rainha dos Anjos, acompanhada de S. Francisco e de Santo António, ordenando-lhe que deixasse a vida de eremita e partisse para Assis, onde em 1454 tomou o hábito dos Irmãos Menores.
As suas virtudes, a sua humildade, a sua palavra, atraíram de tal modo as multidões, ávidas de ouvi-lo – e também os doentes e os que sofriam, na expectativa de um milagre –, que Amadeu pediu aos seus superiores que fosse enviado para outro sítio. Em breve, foi recebido num convento de ), Milão, onde o duque Francesco Sforza e a sua mulher, a duquesa Branca, conceberam por ele uma verdadeira veneração e cobriram-no de honrarias. Graças às preces de Amadeu, a duquesa finalmente deu à luz um herdeiro há muito desejado. Como prova de gratidão e com a benção do papa, o duque concedeu todo o apoio ao projecto de Amadeu de fundar um convento em Milão, o Convento da Paz, o primeiro da Congregação dos Amadeus; em breve, a congregação, confirmada pelo papa Paulo II em 1469, contaria 28 casas na Lombardia, que foram dirigidas pelo fundador até à sua morte.
Enviado a Roma pela duquesa de Milão, Amadeu foi confessor do papa Sistro IV, que o instalou na Igreja de S. Pedro de Montorio (santificada pelo sangue do Apóstolo); aí, com a protecção e os donativos generosos de Luís XI, rei de França, e dos reis católicos Fernando e Isabel de Espanha, o Beato Amadeu fundou um mosteiro. Faleceu no Convento da Paz a 10 de Agosto de 1482.
Uma multidão de milaneses correu para os restos mortais de Amadeu para tocar nas suas vestes; muitos doentes, conta a lenda, ficaram curados. O corpo foi inumado sob as lajes do altar-mor da igreja do convento fundado pelo santo homem. A sua imagem esculpida foi objecto de grande veneração.n201
Existiu um retracto pintado de Amadeu na Igreja de S. Pedro de Montorio.
Hoje quase esquecido, foi, não obstante, objecto de uma bibliografia abundante. No primeiro volume da Bibliotheca Lusitana, Diogo Barbosa Machado (l741 – l 759) cita um grande número de obras onde Amadeu é mencionado, quer por autores franciscanos, quer por autores que abordam temas franciscanos; sobre a sua vida, os seus trabalhos e as suas virtudes escreveram D. Jeronymo de Mascarenhas, bispo de Segóvia, Frei Horácio Sala, Frei Marcos de Lisboa (Chronica da Ordem Serafica) e muitos outros. Rodulph Tossiniarens descreve um retracto do Beato Amadeu com um livro fechado debaixo do braço direito, tendo em baixo, ao lado, a legenda Apertei In Sempre, que é uma alusão às suas Revelações.
Mereceu que lhe fossem reveladas muitas coisas que trouxeram docemente à Religião dos Francisco.
Michoviens escreveu dele que foi ilustre, pela santidade, os milagres e as profecias, e Johan Soar. de Brito, no Theatr. Litter., descreve Amadeu como tendo sido celebérrimo pelo humanismo, mas um humanismo resplandecente de virtude e iluminado por maravilhosas revelações de Deus.n202.jpg
Amadeu compôs um livro de profecias sobre o futuro da Igreja com este longo titulo: Jesus filho de Maria Salvador do homem revelou um novo sentido do Apocalipse e o que estava dentro foi trazido para fora. Isto significa que as coisas que eram ocultas foram assim manifestadas.
É significativo que contra esta obra (provavelmente adulterada por vários erros, escreve Barbosa Machado) o cardeal Bellarmino tenha escrito 57 censuras, cujo manuscrito estava arquivado na biblioteca de Frei Jacinto L. arcebispo Avinhão e antigo mestre do Sacro Palácio; o arcebispo comunicou o manuscrito a D. Julio Bartolocci. dblquote F. pois preciso ler o livro do Beato Amadeu com grande precaução, como recomendam os mais ilustres cronistas da Ordem Seráfica, devendo ser julgado não tanto como uma produção do espírito iluminado do Beato Amadeu, mas como o aborto de uma qualquer fantasia fecunda em ficções, escreveu Cornelio Alapide. Como se vê, as profecias do nosso precursor de Christian Rosenkreutz provocaram, nos tempos que se seguiram à sua morte, sérios remoinhos no seio da Igreja e suscitaram críticas severas e uma condenação declarada, mesmo que esta condenação pretendesse visar mais as "profecias falsas", das quais Amadeu estaria inocente.
Dois séculos mais tarde, os conflitos da Reforma e da Contra-Reforma originaram movimentos passionais, "reformadores" ou "anti-heréticos", proféticos e anunciadores quer de catástrofes terríveis, quer de uma renascença moral e religiosa que iria conduzir a uma próxima concórdia universal.
Os manifestos rosicrucianos e as Bodas Químicas são um eco dos conflitos dessa época; como escreveu Antoine Faivre no volume I da sua obra Accès de l` ésotérisme occidental (Gallimard, 1996, nova edição revista) "atacam o dogmatismo dos príncipes e das Igrejas, o «césaro-papismo luterano e calvinista», anunciam uma reforma geral, uma subversão e uma salutar restauração que se fazem sentir de modo angustiante".
É nesse clima de efervescência espiritual que se situa a lenda dinâmica de Christian Rosenkreutz, com a sua peregrinação ao Oriente e o seu regresso às origens cristãs reencontradas. Infelizmente, a Guerra dos Trinta Anos iria dissipar as promessas de um momento de exaltação criadora.
Nesse mesmo século agitado, barroco e dramático, Portugal libertava-se de uma ocupação espanhola de 40 anos e batia-se na sua própria guerra de trinta anos ao longo das suas fronteiras europeias e, simultaneamente, nas colónias do Brasil, de África e do Oriente.
Um grande movimento dos espíritos acompanhava essas batalhas, essas tragédias e essas esperanças: velhos profetismos de origem joaquimita e templária, alimentados pelas correntes franciscanas e pelo milenarismo paraclético – refiro-me ao culto do Espirito Santo, que ganhou um vigor sem paralelo na pátria portuguesa – que conduziriam a fenómenos extraordinários. Citaremos as profecias do sapateiro Bandarra e a força imensa e magnética do verbo de António Vieira, da Companhia de Jesus – o "imperador da língua portuguesa", como o cognominou Fernando Pessoa –, autor genial de sermões prodigiosos e das páginas sem paralelo da incompleta História do Futuro e da Clavis Prophetarum; lembraremos também a atmosfera febril de escritos anónimos, de milagres e prodígios, de visões e profecias que reinou nessa época. A aparição de cometas anunciava catástrofes, as estrelas prometiam a outros – aos homens de coração e de fé – muitos favores divinos; e velhos mitos semiesquecidos voltavam à superfície das memórias. Viu-se assim emergir quase ao mesmo tempo, como que surdindo de uma mesma nascente, o mito de Christian Rosenkreutz na Alemanha e em Portugal a memória da lenda velha de dois séculos do Beato Amadeu, segurando, no seu túmulo, o livro contendo uma "história do futuro" palpitante de mistérios, que seriam "brevemente" revelados segundo a vontade de Deus.
lado esquerdo e o lado direito do saber
Voltando mais uma vez aos Manifiestos, às Bodas Químicas e às suas relações seminais e literárias com a lenda, a história e a literatura portuguesas. Além dos três sonetos já referidos –No túmulo de Christian Rosenkreutz, Pessoa deixou, entre os numerosos escritos que não foram publicados em sua vida, várias notas, ainda mal conhecidas, relativas à personagem de Christian Rosenkreutz. Vale a pena citar uma delas, escrita em francês. Eis a tradução portuguesa:
"Da Lei da Natureza, representada por Hirão, passa-se à Lei humana, representada por Christian Rosenkreutz, e, em seguida, a Lei de Deus, representada por Jesus.
O erguer ritual do candidato marca a primeira passagem, sendo o instinto a palavra que ele perdeu. A abertura do túmulo de Christian Rosenkreutz marca a segunda passagem: ao ver o Livro T, que o Segundo Mestre aperta contra o peito, encontra-se finalmente a intuição, ou seja, a palavra no seu estado humano, porque a intuição e o instinto da inteligência, o casamento destes dois nas "bodas químicas" de que se descreveram noutro lado, em linguagem simbólica, os graus, ou degraus, mágicos. A descoberta, sem busca nem dificuldade, do túmulo de Jesus, aberto e vazio, marca a passagem final, o casamento divino, o da intuição com a profundeza mesma da alma, a união com Cristo.
No primeiro grau desta verdadeira iniciação, o candidato tem como tarefa matar (em si) os três assassinos do Mestre, os três elementos que se opõem (nele) à Lei da Natureza – o desejo do supérfluo, a fé na ciência e o impulso de dominar (a vontade de poder, de Nietzsche); ou, numa linguagem mais simples, a ambição, o orgulho e a vaidade. Isso, de resto, já lhe é obscuramente indicado, no próprio começo da sua vida iniciática, ao ser despojado de metais. É despojado, tecnicamente, do ferro (armas), da prata (o dinheiro que compra) e do ouro (o dinheiro que seduz) – metais regidos, respectivamente, por Marte, pela Lua e pelo Sol, que significam a ambição, a vaidade e o orgulho. Quando os três assassinos são mortos na alma do aspirante, ele está pronto para progredir.
No segundo grau desta ascensão para Deus, a missão do candidato consiste em reencontrar a palavra. Para isso e preciso que faça três coisas: descobrir onde está situada a cripta mortuária de Christian Rosenkreutz, abrir essa cripta, abrir o túmulo e ver lá o Mestre Perfeito, que conserva a Palavra junto ao coração – esse Livro T (Templi) que ao mesmo tempo completa e se opõe ao Livro M (Mundi). Em primeiro lugar, é preciso que saiba que existe nele uma abobada onde habita a sua alma superior morta neste mundo. Precisa, seguidamente, de a descobrir. Depois, e preciso que saiba abrir essa cripta. Precisa ainda de saber olhar bem para o que lá vê. É preciso, finalmente, que saiba abrir o túmulo do Mestre e vê-lo na majestade da sua morte viva. incorruptível. São estes os cinco pontos perfeitos do grande mestrado [as cinco pontas da estrela mágica, as cinco pétalas da rosa crucificada]. Através deles ele é erguido desta vida, que não e mais que uma morte figurativa.
O homem não estava destinado a ser o que é: foi pela Queda que se tornou tal. Reencontrar a Palavra é reencontrar a verdadeira Lei Humana, o Adão primitivo e andrógino, feito assim à imagem de Elohim. Fazer dentro de si mesmo a união dos dois princípios – eis a Lei Humana reencontrada, a verdadeira criação da pedra filosofal.
Hirão é o Homem que deveria ser e a sua Palavra era esse destino que se perdeu. Poderernos reencontrar a Palavra, não reencontrar Hirão. Ele está verdadeiramente morto, e nisso consiste o pecado original; só nos podemos desfazer deste regenerando-nos, isto é, nascendo de novo. Tal é o sentido do termo «neófito».
(Texto publicado por Teresa Rita Lopes no volume II de Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa, fragmento 76. Editorial Estampa, Lisboa, 1990.), Bernard Gorceix, no texto já citado, diz que o ponto central dos Manifestos e das Bodas Químicas é a alquimia, não só porque ilustra perfeitamente os mistérios da fé, mas porque, simultaneamente, constitui "já a ciência central, a filosofia nova que deverá conciliar o conhecimento e a fé, a razão e o espirito; por outras palavras, nas Bodas Químicas, Andrex elabora o tema da urgência de uma ciência total.
Um outro autor eminente e especialista dos Rosa-Cruz, o Prof. Roland Edighoffer, escreveu, na óptica das Bodas Químicas, que os cavaleiros da Pedra de Ouro conheceram e comprovaram, pela, graça divina, a alquimia regenerativa. Transformados em amigos de Deus , podem e devem estudar o admirável mecanismo do Universo. Não sofrem da cegueira pretensiosa daqueles que se glorificam e orgulham do poder absoluto do homem; e Deus, ao regenera-los, que lhes abre os olhos à contemplação das maravilhas da Natureza. A Mónada Hieroglífica de John Dee é usada como símbolo da perfeita unidade, como o alfa e o ómega, passagem da Trindade à quaternidade, englobando a criação no sacrifício regenerador da cruz, como hierogamia do Criador com a sua criação, para usar as palavras do Prof. Roland Edighoffer. Que Pessoa, em algumas das suas orientações mais importantes, tenha partilhado (e "actualizado") nos anos 30 do nosso século o mesmo pensamento essencial dos Rosa-Cruz do século XVII torna-se evidente ao ler certos textos e fragmentos que ficaram inéditos longos anos, como este
O que acaba de dizer-se da Maçonaria, com mais forte razão se pode dizer dos Rosicrúcios, que, misturados com ela na antecâmara da sua vida emblemática, bem pode ser que a houvessem fundado, ou contribuído para a sua fundação, como sistema especulativo.
A grande Fraternidade é cristã no seu nome, cristã nos seus dois Magnos Símbolos, cristã e católica (embora não-romana) nas suas dedicações. Os Rosicrúcios eram, é certo, cabalistas, como eram, em dois sentidos, alquimistas; mas eram cabalistas cristãos, como eram (sobretudo) alquimistas espirituais. Como vários outros, aproveitaram-se da Cabala e deram-lhe um sentido e um complemento cristãos; por isso com mais razão se poderiarn queixar os judeus de que os Irmãos se haviam servido da Cabala para fins antijudaicos do que os cristãos de que eles tinham introduzido a Cabala na substância do cristismo, onde, aliás, desde o Quarto Evangelho, já toda a alma dela existia. Acresce, quanto à Rósea Cruz, que os grandes expositores dela, desde antes do seu aparecimento até aos nossos dias, tem sido declaradamente místicos cristãos, e, ainda, que o voto de castidade absoluta, a que (por motivos que nada tem com virtude) , a Fraternidade obrigava o candidato, é a coisa menos judaica, embora «cabalística», que se pode conceber". (Obra Poética e em Prosa, de Fernando Pessoa, p. 469, vol. III, ed. Lello & Irmão, Porto, 1986).
Um outro fragmento de Pessoa toca ainda mais directamente uma das preocupações maiores dos Rosa-Cruz do século XVII, manifestada através da alquimia, que Gorceix considerou, a justo título, situar-se – como já se disse – na vontade de criar uma filosofia nova que deverá conciliar o conhecimento e a fé, a razão e o espírito. Eis o fragmento em questão: "Temos assim por certo que no Quinto Império dar-se-á a reunião das duas forças separadas há muito, mas que de há muito se aproximam: o lado esquerdo do saber – a ciência, o raciocínio, a especulação intelectual; e o seu lado direito – o conhecimento oculto, a intuição, a especulação mística e cabalística. A aliança de Sebastião, Imperador do Mundo, e do Papa Angélico representa essa aliança íntima, essa fusão do material e do espiritual, talvez sem separaqao".
É preciso lembrar aqui que Pessoa fala do "Quinto Império" como dos novos tempos anunciados nas profecias de Daniel, que o padre António Vieira, no século de Johann-Valentin Andrex, anunciou para breve. Essa aliança, essa fusão, tal como a descreve Pessoa, representa na Terra aquilo que corresponde á hierogamia do Criador com a sua criação de que fala Edighoffer: "ela responde a uma das aspirações universais e eternas da humanidade".
Espirito Santo e o Imaginário Lusitano
Valerá a pena intercalar aqui algumas palavras sobre o culto do Espirito Santo no nosso pais, que constitui um assunto a um tempo complexo, ocultado e fascinante. Trata-se de um fenómeno que não é exclusivamente português, como é obvio nestes assuntos, mas que encontrou no nosso pais um clima mental e emocional de uma intensidade única – e que prevalece nos nossos dias, mau grado a longa persistência das proibições e dos obstáculos a que, ao longo de séculos, tem sido sujeito.
Hoje, é sobretudo o povo dos Açores que mantém vivo o culto, essa arreigada devoção com que continua a preparar a vinda, para breve Paracleto, na linguagem popular), mormente o povo dos lugares menos sujeitos à centralização dos poderes – pela distância ou a dificuldade de acesso, como nos Açores ou nas América, ou em algum lugarejo de difícil acesso, como a aldeia do Penedo, na serra de Sintra, onde o autor assistiu há relativamente pouco tempo a uma das ultimas festas dedicadas ao Espirito Santo antes de serem interditas.
Infelizmente, poucos portugueses sabem, exceptuados os Açoreanos, que houve em Portugal um culto religioso, que perdura ainda hoje, fundado por um rei. independentemente da autoridade eclesiástica. O culto é o do Espirito Santo, o rei foi D. Dinis, cuja decisão contou por certo com a decisiva influência de sua esposa, a rainha Isabel. D. Rodrigo da Cunha, na sua História Eclesiástica da Igreja de Lisboa, declara categoricamente que ela e el-rei D. Dinis foram os autores da festa que se chama do Espirito Santo, cuja solenidade foi tão celebre por todo o reino e mais nos maiores e mais populosos lugares dele, como ouvimos contar aos antigos, e o bispo do Porto D. Fernando Correia de Lacerda, na sua obra História da Vida, Morte, Milagres, Canonização e Trasladação de Santa Isabel, Sexta Rainha de Portugal, publicada em Lisboa em 1680 – 40 anos depois da Restauração –, a seguir à descrição da faustosa solenidade do culto e em particular da procissão da véspera do dia do Espirito Santo, incluindo a cerimonia das madeixas de cera e dos lumes que se acendiam então para arder por todo o discurso do ano; o que tudo se ordenou por instrução da Santa Rainha –, tem estas palavras extraordinárias: ... e considerando o Império e a candea, se he licito ajuisar as alheas acçoens, principalmente estas que são misteriosas, não podemos deixar de entender, que aquela candeia põe a Santa Rainha, todos os anos, ao Espirito Santo, para que Deus havendo hum só Pastor, e um só rebanho, estabeleça, em cumprimento da sua promessa, na Coroa Portuguesa, o Império Universal do Mundo.
Eis, de um só traço, ligado o culto do Espirito Santo a ideia profética e joaquimita do Império Universal e à esperança escatológica, tão cara ao padre António Vieira, da proximidade do Quinto Império ou Terceira Idade do Mundo, a Idade do Espírito Santo. E não se pense que esse culto, essa ideia e essa esperança apenas interessaram alguns nobres intelectuais ou uns quantos místicos alheios às realidades da vida de todos os dias ou algum raro poeta sonhando grandezas pátrias. Na verdade, o culto instituído pela Rainha Santa no primeiro quartel do século XIV e que teve inicio, segundo os cronistas, no Convento de S. Francisco, da Vila de Alenquer, rapidamente alastrou pelo reino como um fogo de palha, congregando a devoção popular após ter concitado a da nobreza, como declara o mesmo D. Fernando Correia de Lacerda: Depois de (Isabel) haver edificado em Alenquer uma igreja ao Espírito Santo no primeiro ano em que se fez a solenidade da Coroação do Imperador, e com todo o luzimento, não só chamou a nobreza para tomar parte neste Império, que ela tão piedosamente achava de erigir, mas também convocou pessoas de diversas jerarquias , as quais prometeram que por serviço de Deus e da Sua Alteza tratariam da conservação daquela casa, e acrescenta o mesmo autor que estimaram os reis esta piedosa promessa da nobreza e do povo em que o povo igualou a generosidade da nobreza.
Jaime Cortesão em Os Descobrimentos Portugueses: "O Espírito Santo foi, durante os séculos XIV e XV e primeira metade do seguinte, não só uma das mais fervorosas devoções da família real, mas principalmente objecto do culto popular mais difundido em Portugal. Confor-me os cronistas seiscentistas, D. Rodrigo da Cunha, Frei Manuel da Esperança e Frei Francisco Brandão, que ainda assistiram aos últimos esplendores desse culto, celebrado durante a Semana de Pentecostes, a sua principal cerimonia constava da coroarão do Imperador, geralmente na pessoa de um homem do povo pertencente a Irmandade do Espirito Santo, que o elegia. O Imperador empunhava ainda o estoque ou vara, símbolo do mando.
Aquela irmandade, que em geral administrava um hospital, assumia o encargo de celebrar todos os anos a festa do Imperador. A cerimónia da investidura chama-va-se festa do Império, e nos Açores, cujo povoamento começou nos meados do século XV, as próprias ermidas ou casas populares onde ficava depositada, de ano para ano, a coroa de prata, encimada pela pomba do Espírito Santo, designavam-se por impérios.
Jaime Cortesão adianta que foi durante os séculos XIV e XV que o culto do Espírito Santo, ligado à festa do Império, tomou maior desenvolvimento em Portugal (celebrando-se a bordo das naus que atravessavam os oceanos) e espalhando-se pela África Portuguesa, a Índia e, principalmente, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, de onde passou mais tarde, em grande parte por obra dos Açorianos, ao Brasil e à América do Norte. Por outras palavras: o auge do culto do Espírito Santo coincide no País com o período mais intenso da expansão portuguesa no planeta. São ainda do mesmo ilustre historiador, nos capítulos que dedica aos painéis atribuídos a Nuno Gonçalves, estas palavras então ousadas – num contexto cultural marcado por um tenaz neopositivismo que desgraçadamente ainda não desapareceu por completo –, palavras que revelam a rara percepção que tinha das geodésicas essenciais do imaginário português: “Não se nos afigura excessivo, por consequência, crer que a cerimónia da coroação do imperador tenha significado aos olhos de muitos portugueses, e, quando menos, daqueles, frades ou leigos, iniciados na doutrina hortodoxa dos espirituais, a investidura simbólica da nação pelo Espírito Santo” – espécie de Pentecostes nacional – na missão de propagar a Fé a todo o mundo. Por esse motivo, ao século de Quatrocentos, em Portugal, chamamos nós a época do Pentecostes. Eis os motivos que nos levaram a dar ao conjunto dos painéis o titulo de Retábulo da investidura da nação pelo Espírito Santo.
( Portugal Secreto )
( acrílico s/ tela " Calmo na falsa morte - Mestre Lima de Freitas )
As palavras "esoterismo" e "exoterismo", que por vezes confundem os leitores menos prevenidos, designam uma oposição relativa entre o que, de uma forma geral, é entendido por toda a gente e aquilo que, de algum modo, exige uma "iniciação" por se tratar de assuntos especializados ou por existir uma vontade de ocultação de que podem ser exemplos os viários
escalões (nos "profissionais" que querem guardar os segredos da profissão) ou, num outro extremo do "espectro" de ocultação, no meio dos ladrões "profissionais" e outros fora-da-lei. Mas, no sentido mais usual, o termo esoterismo é usado para designar temas relacionados com religiões, movimentos místicos ou filosóficos, doutrinas, disciplinas ou obediências secretas menos divulgados, exigindo uma informação e uma formação prévias.
Nesta perspectiva, um retábulo de igreja é uma obra exotérica porque pretende dirigir-se a toda a gente e ser entendida por toda a gente que conheça minimamente a temática religiosa; torna-se esotérica a partir do momento em que os visitantes da igreja ignorem as significações religiosas e simbólicas do retábulo ou estas sejam de algum modo ocultadas. Quanto ao espectador familiarizado com as doutrinas da religião em questão e com os respectivos símbolos, não terá dificuldades de maior em apreender a significação do mesmo retábulo.
Certamente isto é óbvio para muitas pessoas; mas é também uma fácil desculpa para muitos "turistas" da arte não fazerem o mínimo esforço de compreensão e ocultarem a sua ignorância, acusando a arte de não possuir nem procurar qualquer significação para lá do mero divertimento (?) ou de um jogo gratuito desprovido de objecto, n180.jpg de regras, de qualquer substância significante.
Os esoterismos e os respectivos códigos simbólicos (ou de cariz intencionalmente oculto aos não iniciados) são por natureza desconhecidos do grande público. No nosso pais, onde a história da arte e a investigação dos movimentos do pensamento artístico (nos próprios aspectos de inventariação, mesmo antes de se chegar aos seus aspectos temáticos, programáticos, religiosos, filosóficos, estilísticos e aos seus entrosamentos locais e globais) ainda são pobres e muito recentes, afigura-se difícil arriscar vistas panorâmicas e conclusões generalizadas. A questão torna-se ainda mais delicada no caso de buscarmos justamente aquilo que se quer menos perceptível para a generalidades das pessoas. Assim, é prudentemente que devemos avançar na avaliação das "pistas" suspeitas ou das revelações recentes. Mas essa prudência não exclui o interesse vivíssimo e as descobertas que excitam a inteligência e o sentimento daqueles que se interessam ou se apaixonam por matéria tão excitante – ou tão importante para os homens sequiosos de uma perspectiva ou de uma visão mais completa e mais profunda da arte e da alma humana.
Profetismo e esoterismo
É também preciso saber que as artes não imitam simplesmente o que é visível, mas elevam-se rapidamente até aos princípios formadores donde provém a natureza.
Plotino, Enneada, V, B, 1
É digno de nota, por ser único e inesperado, que quase três séculos e meio depois da vaga inaugural dos escritos rosa-crucianos – os manifestos Fama Fraternitatis, Confessio Fraternitatis e, sobretudo, o romance As Bodas químicas de Christian Rosenkeutz, atribuído a Valentin Andrex, e toda a literatura que daí decorre –, é digno de nota, que Fernando Pessoa, um dos maiores poetas portugueses e europeus do século XX, tenha escrito três sonetos intitulados "No túmulo de Christian Rosenkreutz e que o tema do corps beau et glorieux do Mestre simultaneamente corbeau, corvo, e "corpo de gloria" e do Livro ocluso que segura contra o peito – contendo um tesouro precioso – tenha voltado à tona da literatura do nosso tempo. Num estilo perfeitamente moderno, no melhor sentido da palavra, o tema célebre reaparece aos nossos olhos não como uma evocação ou a celebração de uma efeméride literária, mas como uma forma de meditação poético-filosófica inédita, a um tempo bela na sua linguagem contida, rigorosa, quase matemática, e simultaneamente densíssima e enigmática no mistério mais profundo das suas significações: meditação actual, em três andamentos, sobre a morte como um acordar do sonho da vida, sobre o que a alma pode conhecer da Verdade e sobre Deus enquanto Homem de um outro Deus maior. No nº 8/9 (1978) da revista Exil, André Coyné publicou um longo estudo intitulado "Fernando Pessoa e o sentido da poesia", texto de rara inteligência sobre a obra poética do autor da Mensagem.
"Pessoa desejava que «o pensamento se transcenda a si próprio» para poder estabelecer-se no seu «outro lado»; desejava não avançar ainda mais, corno parece desejar a maior parte dos escritores «modernos», no «sentido da História» – mas sim transcender todo o devir (atravessar o racionalísmo em vez de o afastar na via da razão metafísica, intima, profunda, abissal» das coisas).
A imagem primeira do cadáver do Mestre segurando um livro misterioso é, como todos os motivos arquetípicos, rico de conteúdos paradoxais e de tautologias "em espelho". Começa-se por descobrir a imagem fundadora do morto que sabe, opondo-se ao morto saber do vivo. Por um lado, o Livro enquanto cristalização de uma voz que definitivamente se calou. cuja mensagem se tornou transcendente mercê desse silêncio irreversível, porque nos fala do outro lado da morte. Por outro lado, essa palavra silenciosa que nos chega do não-dito transporta no seu ventre no seu túmulo – a consciência, enquanto experiência vivida, de um passado revoluto transformado num saber sempre futuro. O livro contem um saber absoluto nessa Palavra para sempre não-dita, (isto é, que só será dita no Absoluto, no fim dos tempos), do mesmo modo que o peito do Mestre morto contém um coração incorrompido que simboliza, que é, o próprio sopro, o spir da Palavra.
Os antigos egípcios sabiam-no: transformavam os sarcófagos em verdadeiros livros os, cobertos de uma escrita impronunciável: "livros" que manifestavam a vida do morto, a sua imago, a tecitura da sua "escrita", a sua gramática, a força seminal da formalização, a estrutura individual de um afloramento do Ser, numa palavra, a sua mensagem; continham um cadáver – o conteúdo dessa mensagem.
Mas esse corpo sem vida, mumificado, era por seu turno o sarcófago de outro corpo, ou o livro de um outro texto interior, que o mistério da ressurreição esclarecerá, transformando-o em corpo de luz. Esta Luz, ao surgir, apagará o livro, pronunciará enfim a Palavra impronunciável, o Sentido para além do sentido:
Calmo na falsa morte a nos exposto,
0 Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
Já Bernard Gorceix, no prefácio que escreveu para o livro La Bible des Rose-Croix (P .U. F.,1n187.), chamara a atenção para o facto de o tema do túmulo misterioso, contendo um corpo morto e um tesouro precioso, ser relativamente frequente na literatura da Idade Média e na literatura alquímica: cita o exemplo da Tabula Chemica, de Ibn Umail, uma obra bem conhecida do século XVIII, em que se conta a visita a uma casa subterrânea cujas paredes estão cobertas de frescos e onde um ancião defunto aperta nas mãos um livro ilustrado. Gorceix cita ainda a lenda que circulava no tempo de Valenlin Andrex, segundo a qual ter-se-iam descoberto, debaixo do grande altar de uma igreja de Erfurt, as obras de Basílio Valentin.
Uma das lendas – ou factos históricos – que estariam por detrás do romance de Valentin Andrex foi contada a Wittemans por um certo Roesgen von Floss, respeitável junker batávio; nas sequelas trágicas do assassínio, em 1208, do legado pontifical Pierre Castelnau, desencadeou-se uma perseguição feroz – sob o pretexto de exterminar os Albigenses – movida por Inocêncio III à família Roesgen Germelshausen, que foi massacrada barbaramente e cujo castelo foi destruído e saqueado. Christian, o filho mais novo dos Germelshausen, teria sido o único que escapou com vida, fugindo para o Oriente, onde foi iniciado nos antigos segredos dos Rosa-Cruz. De regresso à Europa, Christian renunciou ao nome de família e tomou o de Rosenkreutz.
O rosicrucianismo, mau grado os antecedentes remotos que alguns lhe atribuem, entrou na história com os chamados Manifestos Rosa-Cruz, publicados anonimamente em Cassel nos anos de 1614 e 1615: a Fama Fraternitatis e a Confessio. Estes manifestos evocavam um herói mítico, o "Pai" CRC, ou Christian Rosenkreutz (Cristão Cruz Rósea), presumido fundador de uma ordem ou fraternidade que assim se afirmava reactivada. CRC teria vivido 106 anos. Segundo a Fama Fraternitatis, o túmulo, cujo paradeiro estava esquecido) foi descoberto 120 anos depois da sua morte por um dos seus sucessores que era arquitecto; encontrava-se numa cripta de planta heptagonal em cujo centro, numa espécie de altar, se exibia urna placa de cobre amarelo com os seguintes dizeres:
A.C.R.C. HOC UNIVERSI COMPENDIUM VIVUS MIHI SEPULCRUM FECI
Aos dois manifestos de Cassel, que despertaram grande excitação na época, veio acrescentar-se em 1616 um estranho romance alquímico, As Bodas Químicas de Christian Rosenkreutz, cujo herói parece ligado a uma ordem que tinha por emblema uma cruz vermelha e rosas da mesma cor. O romance foi escrito por Johann-Valentin Andrex, que veio ao mundo em 1586, em Wurttenberg, neto de um distinto teólogo conhecido por: o Lutero de Wiirttenber.2n189.jpg (50795 bytes)
Valentin Andrex estudou na Universidade de Tubingen. As Bodas teriam sido escritas a partir da sua autobiografia, por volta de 1602 – 1603, isto é, quando o precoce autor contava 16 ou 17 anos.
Ao que parece, antes de 1614, e, segundo alguns, até mesmo entre 1602 e 1603, já circulavam manuscritos da Fama; uma das hipóteses é que o pai de Johann-Valentin, Jacob Andrea: já falecido em 1601), tenha sido o autor das Bodas, talvez com a colaboração do seu circulo de amigos. Em 1603, com 17 anos, o jovem Johann-Valentin compôs duas peças de teatro de estilo isabelino.
Fernando Pessoa conheceu perfeitamente o nome de John Valentine Andrea e as Bodas Químicas de Christian Rosenkreutz, como o demonstram dois fragmentos do espólio publicados por Yvette Genteno no seu livro Fernando Pessoa e a Filosopa Hermetica (Ed. Presença, Lisboa, 1985). São eles o fragmento 54A – 58, onde lemos: dblquote Há registos de que John Valentine Andrea escreveu, por gracejo, com apenas 16 ou 17 anos, as Bodas Químicas de Christian Rosenkreutz. Será difícil contestar que ele tenha escrito este livro.n190.jpg
Contudo, o livro, escrito nessa idade e (se acreditarmos nas suas palavras, não há razão para duvidar delas) como gracejo, é uma grande história simbólica, válida em si. No fragmento 54A – 59, Fernando Pessoa aborda o mesmo problema dos cerca de 17 anos de idade de Johann-Valentin Andrex e comenta que "a obra é de um género que tornaria isto normalmente impossivel".
O teatro isabelino exerceu grande influência sobre Andrex, que visitou Wurttenberg por ocasião da investidura do duque Frederico I – anglófilo muito interessado em alquimia e ocultismo – na Ordem de Cavalaria da Jarreteira (Order of fhe Garter), cerimónia que teve lugar em Estugarda em 1603; a embaixada enviada pelo rei inglês Jaime I incluía músicos, comediantes e actores, que seguidamente representaram noutros lugares do ducado,n191.jpg incluindo a Universidade de Tubingen, onde estudava então o jovem Andrex. As suas Bodas Químicas reflectem o brilhantismo dessas festas e cerimónias, bem como o fascínio das representações teatrais que então tiveram lugar.
Nesse mesmo ano, foi dedicada ao duque Frederico uma obra intitulada Naometria, da autoria de Simão Studion (manuscrito nunca publicado, guardado na Landesbibliothek de Estugarda): trata-se de um texto extensíssimo, profético-apocalíptico, que usa a numerologia baseada nas descrições bíblicas das medidas do Templo de Salomão e que, a partir da simbologia das datas bíblicas e da história europeia, traça profecias acerca de acontecimentos futuros, tais como o fim do reino do Anticristo, a queda do papa e da religião de Maomé e o começo do Millenium, (que, na sua interpretação, ocorreria por volta de 1623). Andrex conheceu a obra de Simão Studion e refere as suas profecias num livro publicado em 1619, Turris Babel, no qual as relaciona (de modo obscuro, para usar as palavras de Frances Yates, grande especialista do rosicrucianismo) com os escritos de Joaquim de Flora, Santa Brígida, Lichtenberg, Paracelso, Guillaume Postel e outros illuminati.
O tema do livro fechado que o cadáver incorrupto de um homem virtuoso, ou mesmo santificado, aperta nas mãos – livro e cadáver em cuja oclusão, que a morte selou, está contido um saber esotérico ou profético que só será conhecido pelos homens quando Deus o quiser – reaparece, sob outra forma, no políptico conhecido por Tábuas de S. Vicente de Fora, do Museu de Arte Antiga de Lisboa, obra-prima da pintura portuguesa do século XV atribuída a Nuno Gonçalves; com a única diferença de que, nessas tábuas, não se trata do "belo corpo" de um santo falecido, mas de um ressuscitado – talvez S. Vicente – pintado duas vezes: uma vez no painel central do lado esquerdo do observador, apresentando ao rei um livro aberto (saber esotérico), e no painel central, do lado direito do observador, tocando, com a mão direita, o peito de um cavaleiro ajoelhado a seus pés; neste painel, o santo tem o livrou fechado debaixo do braço (revelação esotérica). Este Livro ocluso, para utilizar as palavras de Fernando Pessoa, evoca o "Livro T", que Christian Rosenkreutz aperta contra o peito e de que fala a Fama Fraternitatis.
Terá o Mártir Vicente vindo do mundo além-morte para nos comunicar uma mensagem Ou tratar-se-á de um outro enviado, quiçá Melquisedeque, ou o lendário Preste João, ou talvez ainda a hipostase divina que há-de vir em breve e a que chamam Paracleto, o Consolador (ou Paraclito, no dizer do povo)? Trata-se, em qualquer caso, de uma figura divina, de um mensageiro ou de um anjo vindo do Além que mostra ao rei ajoelhado o livro aberto, ou a palavra dita, visto de perto, pode ler-se nas páginas um fragmento do Evangelho de João; à direita, simetricamente, a mesma figura misteriosa mantém o livro fechado sob o braço e toca, com a mão direita, o peito do cavaleiro, também ajoelhado.
Há ainda um outro exemplo português, que pouquíssimos conhecem, do mesmo tema arquetípico, do maior interesse no nosso contexto por ser próximo do modelo criado por Johann-Valentin Andrex: trata-se do Beato Amadeu, ou Amadeus, do século XV, cuja lenda é semelhante e precede a de Chrislian Rosenkreutz, escrita dois séculos depois. Lenda que se mistura à verdade histórica, porque o Beato Amadeu existiu deveras.
Um santo esquecido
Quinto filho de uma família nobre, o seu nome era João de Meneses da Silva e teria nascido em 1431 em Ceuta, então possessão portuguesa; ou, segundo Frei Luís de Sousa, na História de S. Domingos; citado por Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, tomo II, Lisboa, 1992, 3ª edição), em Campo Maior, Elvas.n199.
Parece ter frequentado na adolescência o palácio do rei D. Duarte, apaixonando-se loucamente pela princesa Leonor. Mandou gravar numa medalha o desenho de um altar com a legenda Ignoto Deo (a um deus desconhecido), declarando assim, e simultaneamente ocultando, a sua paixão pela princesa, que partiria em breve para Itália, onde o papa Nicolau V celebrou o seu casamento com o imperador da Alemanha Frederico III. A lenda acrescenta que o jovem apaixonado viajou clandestino numa das naves da armada que levou a infanta a Roma, como indica Jorge Campos Tavares no Dicionário de Santos (Porto, 1990). A seguir a esta irrevogável separação, que marcava o termo de um amor impossível, João de Meneses da Silva mudou o nome para Amadeu e ingressou no Convento de Nossa Senhora de Guadalupe, na Ordem de S. Jerónimo, daí passando para o Convento de Cremona, onde permaneceu uma dezena de anos. As penitências e a austeridade da sua vida cedo criaram em torno dele uma aureola de santidade. Teve então uma visão da Rainha dos Anjos, acompanhada de S. Francisco e de Santo António, ordenando-lhe que deixasse a vida de eremita e partisse para Assis, onde em 1454 tomou o hábito dos Irmãos Menores.
As suas virtudes, a sua humildade, a sua palavra, atraíram de tal modo as multidões, ávidas de ouvi-lo – e também os doentes e os que sofriam, na expectativa de um milagre –, que Amadeu pediu aos seus superiores que fosse enviado para outro sítio. Em breve, foi recebido num convento de ), Milão, onde o duque Francesco Sforza e a sua mulher, a duquesa Branca, conceberam por ele uma verdadeira veneração e cobriram-no de honrarias. Graças às preces de Amadeu, a duquesa finalmente deu à luz um herdeiro há muito desejado. Como prova de gratidão e com a benção do papa, o duque concedeu todo o apoio ao projecto de Amadeu de fundar um convento em Milão, o Convento da Paz, o primeiro da Congregação dos Amadeus; em breve, a congregação, confirmada pelo papa Paulo II em 1469, contaria 28 casas na Lombardia, que foram dirigidas pelo fundador até à sua morte.
Enviado a Roma pela duquesa de Milão, Amadeu foi confessor do papa Sistro IV, que o instalou na Igreja de S. Pedro de Montorio (santificada pelo sangue do Apóstolo); aí, com a protecção e os donativos generosos de Luís XI, rei de França, e dos reis católicos Fernando e Isabel de Espanha, o Beato Amadeu fundou um mosteiro. Faleceu no Convento da Paz a 10 de Agosto de 1482.
Uma multidão de milaneses correu para os restos mortais de Amadeu para tocar nas suas vestes; muitos doentes, conta a lenda, ficaram curados. O corpo foi inumado sob as lajes do altar-mor da igreja do convento fundado pelo santo homem. A sua imagem esculpida foi objecto de grande veneração.n201
Existiu um retracto pintado de Amadeu na Igreja de S. Pedro de Montorio.
Hoje quase esquecido, foi, não obstante, objecto de uma bibliografia abundante. No primeiro volume da Bibliotheca Lusitana, Diogo Barbosa Machado (l741 – l 759) cita um grande número de obras onde Amadeu é mencionado, quer por autores franciscanos, quer por autores que abordam temas franciscanos; sobre a sua vida, os seus trabalhos e as suas virtudes escreveram D. Jeronymo de Mascarenhas, bispo de Segóvia, Frei Horácio Sala, Frei Marcos de Lisboa (Chronica da Ordem Serafica) e muitos outros. Rodulph Tossiniarens descreve um retracto do Beato Amadeu com um livro fechado debaixo do braço direito, tendo em baixo, ao lado, a legenda Apertei In Sempre, que é uma alusão às suas Revelações.
Mereceu que lhe fossem reveladas muitas coisas que trouxeram docemente à Religião dos Francisco.
Michoviens escreveu dele que foi ilustre, pela santidade, os milagres e as profecias, e Johan Soar. de Brito, no Theatr. Litter., descreve Amadeu como tendo sido celebérrimo pelo humanismo, mas um humanismo resplandecente de virtude e iluminado por maravilhosas revelações de Deus.n202.jpg
Amadeu compôs um livro de profecias sobre o futuro da Igreja com este longo titulo: Jesus filho de Maria Salvador do homem revelou um novo sentido do Apocalipse e o que estava dentro foi trazido para fora. Isto significa que as coisas que eram ocultas foram assim manifestadas.
É significativo que contra esta obra (provavelmente adulterada por vários erros, escreve Barbosa Machado) o cardeal Bellarmino tenha escrito 57 censuras, cujo manuscrito estava arquivado na biblioteca de Frei Jacinto L. arcebispo Avinhão e antigo mestre do Sacro Palácio; o arcebispo comunicou o manuscrito a D. Julio Bartolocci. dblquote F. pois preciso ler o livro do Beato Amadeu com grande precaução, como recomendam os mais ilustres cronistas da Ordem Seráfica, devendo ser julgado não tanto como uma produção do espírito iluminado do Beato Amadeu, mas como o aborto de uma qualquer fantasia fecunda em ficções, escreveu Cornelio Alapide. Como se vê, as profecias do nosso precursor de Christian Rosenkreutz provocaram, nos tempos que se seguiram à sua morte, sérios remoinhos no seio da Igreja e suscitaram críticas severas e uma condenação declarada, mesmo que esta condenação pretendesse visar mais as "profecias falsas", das quais Amadeu estaria inocente.
Dois séculos mais tarde, os conflitos da Reforma e da Contra-Reforma originaram movimentos passionais, "reformadores" ou "anti-heréticos", proféticos e anunciadores quer de catástrofes terríveis, quer de uma renascença moral e religiosa que iria conduzir a uma próxima concórdia universal.
Os manifestos rosicrucianos e as Bodas Químicas são um eco dos conflitos dessa época; como escreveu Antoine Faivre no volume I da sua obra Accès de l` ésotérisme occidental (Gallimard, 1996, nova edição revista) "atacam o dogmatismo dos príncipes e das Igrejas, o «césaro-papismo luterano e calvinista», anunciam uma reforma geral, uma subversão e uma salutar restauração que se fazem sentir de modo angustiante".
É nesse clima de efervescência espiritual que se situa a lenda dinâmica de Christian Rosenkreutz, com a sua peregrinação ao Oriente e o seu regresso às origens cristãs reencontradas. Infelizmente, a Guerra dos Trinta Anos iria dissipar as promessas de um momento de exaltação criadora.
Nesse mesmo século agitado, barroco e dramático, Portugal libertava-se de uma ocupação espanhola de 40 anos e batia-se na sua própria guerra de trinta anos ao longo das suas fronteiras europeias e, simultaneamente, nas colónias do Brasil, de África e do Oriente.
Um grande movimento dos espíritos acompanhava essas batalhas, essas tragédias e essas esperanças: velhos profetismos de origem joaquimita e templária, alimentados pelas correntes franciscanas e pelo milenarismo paraclético – refiro-me ao culto do Espirito Santo, que ganhou um vigor sem paralelo na pátria portuguesa – que conduziriam a fenómenos extraordinários. Citaremos as profecias do sapateiro Bandarra e a força imensa e magnética do verbo de António Vieira, da Companhia de Jesus – o "imperador da língua portuguesa", como o cognominou Fernando Pessoa –, autor genial de sermões prodigiosos e das páginas sem paralelo da incompleta História do Futuro e da Clavis Prophetarum; lembraremos também a atmosfera febril de escritos anónimos, de milagres e prodígios, de visões e profecias que reinou nessa época. A aparição de cometas anunciava catástrofes, as estrelas prometiam a outros – aos homens de coração e de fé – muitos favores divinos; e velhos mitos semiesquecidos voltavam à superfície das memórias. Viu-se assim emergir quase ao mesmo tempo, como que surdindo de uma mesma nascente, o mito de Christian Rosenkreutz na Alemanha e em Portugal a memória da lenda velha de dois séculos do Beato Amadeu, segurando, no seu túmulo, o livro contendo uma "história do futuro" palpitante de mistérios, que seriam "brevemente" revelados segundo a vontade de Deus.
lado esquerdo e o lado direito do saber
Voltando mais uma vez aos Manifiestos, às Bodas Químicas e às suas relações seminais e literárias com a lenda, a história e a literatura portuguesas. Além dos três sonetos já referidos –No túmulo de Christian Rosenkreutz, Pessoa deixou, entre os numerosos escritos que não foram publicados em sua vida, várias notas, ainda mal conhecidas, relativas à personagem de Christian Rosenkreutz. Vale a pena citar uma delas, escrita em francês. Eis a tradução portuguesa:
"Da Lei da Natureza, representada por Hirão, passa-se à Lei humana, representada por Christian Rosenkreutz, e, em seguida, a Lei de Deus, representada por Jesus.
O erguer ritual do candidato marca a primeira passagem, sendo o instinto a palavra que ele perdeu. A abertura do túmulo de Christian Rosenkreutz marca a segunda passagem: ao ver o Livro T, que o Segundo Mestre aperta contra o peito, encontra-se finalmente a intuição, ou seja, a palavra no seu estado humano, porque a intuição e o instinto da inteligência, o casamento destes dois nas "bodas químicas" de que se descreveram noutro lado, em linguagem simbólica, os graus, ou degraus, mágicos. A descoberta, sem busca nem dificuldade, do túmulo de Jesus, aberto e vazio, marca a passagem final, o casamento divino, o da intuição com a profundeza mesma da alma, a união com Cristo.
No primeiro grau desta verdadeira iniciação, o candidato tem como tarefa matar (em si) os três assassinos do Mestre, os três elementos que se opõem (nele) à Lei da Natureza – o desejo do supérfluo, a fé na ciência e o impulso de dominar (a vontade de poder, de Nietzsche); ou, numa linguagem mais simples, a ambição, o orgulho e a vaidade. Isso, de resto, já lhe é obscuramente indicado, no próprio começo da sua vida iniciática, ao ser despojado de metais. É despojado, tecnicamente, do ferro (armas), da prata (o dinheiro que compra) e do ouro (o dinheiro que seduz) – metais regidos, respectivamente, por Marte, pela Lua e pelo Sol, que significam a ambição, a vaidade e o orgulho. Quando os três assassinos são mortos na alma do aspirante, ele está pronto para progredir.
No segundo grau desta ascensão para Deus, a missão do candidato consiste em reencontrar a palavra. Para isso e preciso que faça três coisas: descobrir onde está situada a cripta mortuária de Christian Rosenkreutz, abrir essa cripta, abrir o túmulo e ver lá o Mestre Perfeito, que conserva a Palavra junto ao coração – esse Livro T (Templi) que ao mesmo tempo completa e se opõe ao Livro M (Mundi). Em primeiro lugar, é preciso que saiba que existe nele uma abobada onde habita a sua alma superior morta neste mundo. Precisa, seguidamente, de a descobrir. Depois, e preciso que saiba abrir essa cripta. Precisa ainda de saber olhar bem para o que lá vê. É preciso, finalmente, que saiba abrir o túmulo do Mestre e vê-lo na majestade da sua morte viva. incorruptível. São estes os cinco pontos perfeitos do grande mestrado [as cinco pontas da estrela mágica, as cinco pétalas da rosa crucificada]. Através deles ele é erguido desta vida, que não e mais que uma morte figurativa.
O homem não estava destinado a ser o que é: foi pela Queda que se tornou tal. Reencontrar a Palavra é reencontrar a verdadeira Lei Humana, o Adão primitivo e andrógino, feito assim à imagem de Elohim. Fazer dentro de si mesmo a união dos dois princípios – eis a Lei Humana reencontrada, a verdadeira criação da pedra filosofal.
Hirão é o Homem que deveria ser e a sua Palavra era esse destino que se perdeu. Poderernos reencontrar a Palavra, não reencontrar Hirão. Ele está verdadeiramente morto, e nisso consiste o pecado original; só nos podemos desfazer deste regenerando-nos, isto é, nascendo de novo. Tal é o sentido do termo «neófito».
(Texto publicado por Teresa Rita Lopes no volume II de Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa, fragmento 76. Editorial Estampa, Lisboa, 1990.), Bernard Gorceix, no texto já citado, diz que o ponto central dos Manifestos e das Bodas Químicas é a alquimia, não só porque ilustra perfeitamente os mistérios da fé, mas porque, simultaneamente, constitui "já a ciência central, a filosofia nova que deverá conciliar o conhecimento e a fé, a razão e o espirito; por outras palavras, nas Bodas Químicas, Andrex elabora o tema da urgência de uma ciência total.
Um outro autor eminente e especialista dos Rosa-Cruz, o Prof. Roland Edighoffer, escreveu, na óptica das Bodas Químicas, que os cavaleiros da Pedra de Ouro conheceram e comprovaram, pela, graça divina, a alquimia regenerativa. Transformados em amigos de Deus , podem e devem estudar o admirável mecanismo do Universo. Não sofrem da cegueira pretensiosa daqueles que se glorificam e orgulham do poder absoluto do homem; e Deus, ao regenera-los, que lhes abre os olhos à contemplação das maravilhas da Natureza. A Mónada Hieroglífica de John Dee é usada como símbolo da perfeita unidade, como o alfa e o ómega, passagem da Trindade à quaternidade, englobando a criação no sacrifício regenerador da cruz, como hierogamia do Criador com a sua criação, para usar as palavras do Prof. Roland Edighoffer. Que Pessoa, em algumas das suas orientações mais importantes, tenha partilhado (e "actualizado") nos anos 30 do nosso século o mesmo pensamento essencial dos Rosa-Cruz do século XVII torna-se evidente ao ler certos textos e fragmentos que ficaram inéditos longos anos, como este
O que acaba de dizer-se da Maçonaria, com mais forte razão se pode dizer dos Rosicrúcios, que, misturados com ela na antecâmara da sua vida emblemática, bem pode ser que a houvessem fundado, ou contribuído para a sua fundação, como sistema especulativo.
A grande Fraternidade é cristã no seu nome, cristã nos seus dois Magnos Símbolos, cristã e católica (embora não-romana) nas suas dedicações. Os Rosicrúcios eram, é certo, cabalistas, como eram, em dois sentidos, alquimistas; mas eram cabalistas cristãos, como eram (sobretudo) alquimistas espirituais. Como vários outros, aproveitaram-se da Cabala e deram-lhe um sentido e um complemento cristãos; por isso com mais razão se poderiarn queixar os judeus de que os Irmãos se haviam servido da Cabala para fins antijudaicos do que os cristãos de que eles tinham introduzido a Cabala na substância do cristismo, onde, aliás, desde o Quarto Evangelho, já toda a alma dela existia. Acresce, quanto à Rósea Cruz, que os grandes expositores dela, desde antes do seu aparecimento até aos nossos dias, tem sido declaradamente místicos cristãos, e, ainda, que o voto de castidade absoluta, a que (por motivos que nada tem com virtude) , a Fraternidade obrigava o candidato, é a coisa menos judaica, embora «cabalística», que se pode conceber". (Obra Poética e em Prosa, de Fernando Pessoa, p. 469, vol. III, ed. Lello & Irmão, Porto, 1986).
Um outro fragmento de Pessoa toca ainda mais directamente uma das preocupações maiores dos Rosa-Cruz do século XVII, manifestada através da alquimia, que Gorceix considerou, a justo título, situar-se – como já se disse – na vontade de criar uma filosofia nova que deverá conciliar o conhecimento e a fé, a razão e o espírito. Eis o fragmento em questão: "Temos assim por certo que no Quinto Império dar-se-á a reunião das duas forças separadas há muito, mas que de há muito se aproximam: o lado esquerdo do saber – a ciência, o raciocínio, a especulação intelectual; e o seu lado direito – o conhecimento oculto, a intuição, a especulação mística e cabalística. A aliança de Sebastião, Imperador do Mundo, e do Papa Angélico representa essa aliança íntima, essa fusão do material e do espiritual, talvez sem separaqao".
É preciso lembrar aqui que Pessoa fala do "Quinto Império" como dos novos tempos anunciados nas profecias de Daniel, que o padre António Vieira, no século de Johann-Valentin Andrex, anunciou para breve. Essa aliança, essa fusão, tal como a descreve Pessoa, representa na Terra aquilo que corresponde á hierogamia do Criador com a sua criação de que fala Edighoffer: "ela responde a uma das aspirações universais e eternas da humanidade".
Espirito Santo e o Imaginário Lusitano
Valerá a pena intercalar aqui algumas palavras sobre o culto do Espirito Santo no nosso pais, que constitui um assunto a um tempo complexo, ocultado e fascinante. Trata-se de um fenómeno que não é exclusivamente português, como é obvio nestes assuntos, mas que encontrou no nosso pais um clima mental e emocional de uma intensidade única – e que prevalece nos nossos dias, mau grado a longa persistência das proibições e dos obstáculos a que, ao longo de séculos, tem sido sujeito.
Hoje, é sobretudo o povo dos Açores que mantém vivo o culto, essa arreigada devoção com que continua a preparar a vinda, para breve Paracleto, na linguagem popular), mormente o povo dos lugares menos sujeitos à centralização dos poderes – pela distância ou a dificuldade de acesso, como nos Açores ou nas América, ou em algum lugarejo de difícil acesso, como a aldeia do Penedo, na serra de Sintra, onde o autor assistiu há relativamente pouco tempo a uma das ultimas festas dedicadas ao Espirito Santo antes de serem interditas.
Infelizmente, poucos portugueses sabem, exceptuados os Açoreanos, que houve em Portugal um culto religioso, que perdura ainda hoje, fundado por um rei. independentemente da autoridade eclesiástica. O culto é o do Espirito Santo, o rei foi D. Dinis, cuja decisão contou por certo com a decisiva influência de sua esposa, a rainha Isabel. D. Rodrigo da Cunha, na sua História Eclesiástica da Igreja de Lisboa, declara categoricamente que ela e el-rei D. Dinis foram os autores da festa que se chama do Espirito Santo, cuja solenidade foi tão celebre por todo o reino e mais nos maiores e mais populosos lugares dele, como ouvimos contar aos antigos, e o bispo do Porto D. Fernando Correia de Lacerda, na sua obra História da Vida, Morte, Milagres, Canonização e Trasladação de Santa Isabel, Sexta Rainha de Portugal, publicada em Lisboa em 1680 – 40 anos depois da Restauração –, a seguir à descrição da faustosa solenidade do culto e em particular da procissão da véspera do dia do Espirito Santo, incluindo a cerimonia das madeixas de cera e dos lumes que se acendiam então para arder por todo o discurso do ano; o que tudo se ordenou por instrução da Santa Rainha –, tem estas palavras extraordinárias: ... e considerando o Império e a candea, se he licito ajuisar as alheas acçoens, principalmente estas que são misteriosas, não podemos deixar de entender, que aquela candeia põe a Santa Rainha, todos os anos, ao Espirito Santo, para que Deus havendo hum só Pastor, e um só rebanho, estabeleça, em cumprimento da sua promessa, na Coroa Portuguesa, o Império Universal do Mundo.
Eis, de um só traço, ligado o culto do Espirito Santo a ideia profética e joaquimita do Império Universal e à esperança escatológica, tão cara ao padre António Vieira, da proximidade do Quinto Império ou Terceira Idade do Mundo, a Idade do Espírito Santo. E não se pense que esse culto, essa ideia e essa esperança apenas interessaram alguns nobres intelectuais ou uns quantos místicos alheios às realidades da vida de todos os dias ou algum raro poeta sonhando grandezas pátrias. Na verdade, o culto instituído pela Rainha Santa no primeiro quartel do século XIV e que teve inicio, segundo os cronistas, no Convento de S. Francisco, da Vila de Alenquer, rapidamente alastrou pelo reino como um fogo de palha, congregando a devoção popular após ter concitado a da nobreza, como declara o mesmo D. Fernando Correia de Lacerda: Depois de (Isabel) haver edificado em Alenquer uma igreja ao Espírito Santo no primeiro ano em que se fez a solenidade da Coroação do Imperador, e com todo o luzimento, não só chamou a nobreza para tomar parte neste Império, que ela tão piedosamente achava de erigir, mas também convocou pessoas de diversas jerarquias , as quais prometeram que por serviço de Deus e da Sua Alteza tratariam da conservação daquela casa, e acrescenta o mesmo autor que estimaram os reis esta piedosa promessa da nobreza e do povo em que o povo igualou a generosidade da nobreza.
Jaime Cortesão em Os Descobrimentos Portugueses: "O Espírito Santo foi, durante os séculos XIV e XV e primeira metade do seguinte, não só uma das mais fervorosas devoções da família real, mas principalmente objecto do culto popular mais difundido em Portugal. Confor-me os cronistas seiscentistas, D. Rodrigo da Cunha, Frei Manuel da Esperança e Frei Francisco Brandão, que ainda assistiram aos últimos esplendores desse culto, celebrado durante a Semana de Pentecostes, a sua principal cerimonia constava da coroarão do Imperador, geralmente na pessoa de um homem do povo pertencente a Irmandade do Espirito Santo, que o elegia. O Imperador empunhava ainda o estoque ou vara, símbolo do mando.
Aquela irmandade, que em geral administrava um hospital, assumia o encargo de celebrar todos os anos a festa do Imperador. A cerimónia da investidura chama-va-se festa do Império, e nos Açores, cujo povoamento começou nos meados do século XV, as próprias ermidas ou casas populares onde ficava depositada, de ano para ano, a coroa de prata, encimada pela pomba do Espírito Santo, designavam-se por impérios.
Jaime Cortesão adianta que foi durante os séculos XIV e XV que o culto do Espírito Santo, ligado à festa do Império, tomou maior desenvolvimento em Portugal (celebrando-se a bordo das naus que atravessavam os oceanos) e espalhando-se pela África Portuguesa, a Índia e, principalmente, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, de onde passou mais tarde, em grande parte por obra dos Açorianos, ao Brasil e à América do Norte. Por outras palavras: o auge do culto do Espírito Santo coincide no País com o período mais intenso da expansão portuguesa no planeta. São ainda do mesmo ilustre historiador, nos capítulos que dedica aos painéis atribuídos a Nuno Gonçalves, estas palavras então ousadas – num contexto cultural marcado por um tenaz neopositivismo que desgraçadamente ainda não desapareceu por completo –, palavras que revelam a rara percepção que tinha das geodésicas essenciais do imaginário português: “Não se nos afigura excessivo, por consequência, crer que a cerimónia da coroação do imperador tenha significado aos olhos de muitos portugueses, e, quando menos, daqueles, frades ou leigos, iniciados na doutrina hortodoxa dos espirituais, a investidura simbólica da nação pelo Espírito Santo” – espécie de Pentecostes nacional – na missão de propagar a Fé a todo o mundo. Por esse motivo, ao século de Quatrocentos, em Portugal, chamamos nós a época do Pentecostes. Eis os motivos que nos levaram a dar ao conjunto dos painéis o titulo de Retábulo da investidura da nação pelo Espírito Santo.
( Portugal Secreto )
( acrílico s/ tela " Calmo na falsa morte - Mestre Lima de Freitas )
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