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sábado, 17 de agosto de 2013

A EMBLEMÁTICA BATALHA DE OURIQUE - DE MILAGRE A PRIMEIRO MITO DE PORTUGAL

No dia 25 de Julho de 1139 travou-se a célebre batalha de Ourique, em que D. Afonso Henriques desbaratou os mouros, cujo chefe, denominado Ismar ou Omar, conseguiu fugir, salvando a custo a vida. Segundo os cronistas antigos, a batalha de Ourique foi a pedra angular da fundação de Portugal como reino independente. Ali os soldados aclamaram rei o jovem príncipe que os conduzira à vitória sobre cinco reis mouros e os exércitos sarracenos de África e de Espanha.

Foi a mais célebre de todas as histórias de lutas contra os mouros. Este facto deveu-se a uma das muitas incursões que os cristãos faziam em terras de mouros para conseguirem gado e demais despojos.

Os momentos que antecederam a batalha são assim relatados por André de Resende:
“Afonso ocupou a colina onde estava uma antiga ermida em que determinado velho, de provecta idade, vivia entre os mouros como um ermitão e que, devido à pobreza e santidade de vida, por ninguém era provocado injustamente. O quase infindável contingente militar de Ismar enchia todos os campos em redor e já esperançadamente se via a tragar os adversários cercados. Não parecia aos nossos soldados ser decisão avisada combater contra tão grande multidão, pois cada um deles teria de defrontar no combate para cima de cem inimigos, mas o príncipe robusteceu o espírito dos seus soldados por meio de um discurso cheio de esperança e firmeza. Ao mandá-los dispersar ordenou que tratassem de seus corpos e que aguardassem alegremente o dia seguinte que era santificado ao apóstolo Tiago, padroeiro das Hispânias.

Como tivesse anoitecido, veio aquele anacoreta à presença de Afonso e exortou-o a ter coragem com a revelação de uma profecia. Disse-lhe que à hora da noite em que ouvisse o som de uma sineta que estava na capelinha deveria sair da tenda pois lhe iria aparecer no ar Cristo suspenso da cruz.
Afonso, contente com uma notícia tão desejada e tão inesperada, velou toda a noite aguardando o prometido. E assim, ao romper da alva e antes do dia, ao sair da sua tenda real quando tinia a sineta, pôde olhar para o Senhor crucificado, suspenso no ar. Arrastado, quase fora de si, pelo prazer desta visão, adorando-o dizia assim: ‘Será verdade, ó Salvador do mundo, que me apareces a mim neste momento? Mas por que razão apareces àquele que em ti crê e que te honra com a maior devoção? Antes te dignasses a aparecer a estes infiéis, ignorantes da tua divindade, inimigos teus e portanto meus, para que compreendam o mistério da tua cruz e deixem de ser insensatos’. Quando com estas e outras palavras semelhantes prosseguia, como que em êxtase, foi muito agradavelmente surpreendido pela voz de Cristo que lhe falava e prometia vitória. Logo que a divina aparição se recolheu ao céu, pediu as armas, ordenou que se armassem os soldados, que se formassem as linhas de batalha e que as tubas em uníssono dessem o sinal.
Alguns dos chefes procuraram-no em nome do exército, dizendo:
- ‘Os teus homens, valente chefe, pedem que lhes permitas saudar-te como rei’.

Mas ele respondeu-lhes:
- ‘Fidelíssimos companheiros de armas! Coube-me a mim, entre vós, o nome e título suficientemente honroso de príncipe. Não ambiciono outro. E ainda que o desejasse muitíssimo ou quisesse aceder ao que pedis, nem o momento nem o local o permitem. Esforçar-me-ei por que não vos desagrade como vosso chefe; esforçai-vos vós para que eu como chefe não tenha a lamentar a perda de soldados’.
A resposta foi a seguinte:
- 'Não só prometemos o que pedes como, quanto a nós, não faltaremos ao dever. Mas pelo rei combateríamos com mais ardor, venceríamos com mais honra e morreríamos mais alegremente’.
Então, depois de quase terem forçado a quem se escusava, foi aclamado por três vezes em altos brados e ao som das tubas, clarins e tambores:
- ‘Vida e vitória para Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal’!
Depois de darem aos soldados o santo-e-senha, passam-se para o campo dos inimigos. Da parte contrária, porém, aquele inumerável exército de bárbaros estrondeava com tão dissonantes clamores e com tão terrível estrépito, que parecia que o céu vinha abaixo e que a terra era abalada por um sismo.
Principiou o combate, sangrento, implacável, da primeira hora do dia até ao meio-dia, até que o próprio Ismar, cuja vida já corria risco, vida que os nossos mais-que-tudo cobiçavam, encontrando-se em situação desesperada e tendo perdido na peleja o primo de nome Omar Atagor, neto do rei Ali, a quem constituíra seu guarda de corpo, fugiu com os reis que com ele estavam. Verteu-se, porém, tanto sangue que do local da batalha correram regos na direcção do Cobre e do Terges (rios próximo de Castro Verde). E, mais ainda, chovendo poucos dias depois, como a água tivesse lavado o chão sujo de sangue escuro e engrossado os regos, o Terges que desagua no confluente Cobres levou as águas poluídas até mesmo ao Guadiana. Afonso, o novo rei, portanto, ficou nos arraiais durante três dias conforme era hábito dos vencedores, tendo deixado o despojo para os soldados.
Ele próprio, que até então usava um escudo branco, imaginou insígnias que representassem o combate que ali se passou. Em primeiro lugar, porque no ar olhara para Cristo pregado na cruz, desenhou no escudo de prata uma cruz da cor do céu; depois, porque tinha vencido cinco reis, separou com a própria cruz cinco escudos; em cada um destes representou trinta moedas de prata, porque se considerara que por essa soma fora vendido o Salvador do mundo.
O desenho das moedas foi modificado por uma questão de comodidade pelos reis que se seguiram e em cada um destes escudos foram colocadas cinco moedas em forma de cruz, aproximadamente com a forma da letra X, de maneira que, contando duas vezes, o que está no meio e como a conta é feita desde cima e de lado a lado, se perfaz o número trinta.
Foram estas as insígnias que naquele momento e naquele lugar se adoptaram. Quanto aos sete castelos que no campo rubro do escudo régio rodeiam as orlas, relacionam-se com outra história.”

O próprio D. Afonso Henriques narra este mesmo acontecimento anos mais tarde, nomeadamente a 29 de Outubro de 1152, em Coimbra, perante muitos fidalgos, entre os quais Mem Peres, que redigiu, a pedido do mestre Alberto, conselheiro de el-rei, a seguinte carta:
“Eu Afonso, rei de Portugal, filho do Conde D. Henrique, neto do grande rei D. Afonso, diante de vós, Bispo de Braga, Bispo de Coimbra e Teodósio e de todos os mais vassalos do meu reino, juro em esta cruz de metal e neste livro dos santos evangelhos, em que ponho minhas mãos que eu sou miserável pecador, vi com estes olhos indignos Nosso Senhor Jesus Cristo… e disse entre mim mesmo:
Mui bem sabes, Senhor Jesus Cristo, que por amor vosso tomei sobre mim esta guerra, contra os vossos adversários, em vossa mão está dar a mim e aos meus fortaleza, para vencer os blasfemadores do vosso nome... A que fim me apareceis Senhor? Quereis por ventura acrescentar fé a quem tanta a tem? Melhor é por certo que vos vejam os inimigos que não crêem em vós, que eu, desde a fonte de baptismo, vos conheci por Deus…
O Senhor com um tom de voz suave que minhas orelhas indignas ouviram, me disse:
‘Não te apareci deste modo para te acrescentar a tua fé mas para fortalecer o teu coração, neste conflito, e fundar os princípios do teu reino, sobre pedra firme. Confia, Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas também todas as outras em que pelejares, contra os inimigos da minha cruz... Acharás na gente alegre e esforçada, e te pedirão que entres na batalha com o título de Rei... Eu sou o fundador e distribuidor de reinos e impérios e quero em ti e teus descendentes fundar, para mim, um império para cujo meio seja meu nome publicado entre as nações mais estranhas’...
E que isto se passasse na verdade juro eu, D. Afonso, pelos santos evangelhos, tocados com estas mãos...”

Por sua vez, Frei Bernardo de Brito escreveu na Crónica de Cister o célebre texto que Frei António Brandão reproduziu depois na Monarchia Lusitana. Este texto, que reaviva o patriotismo lusitano, demonstra como os cistercienses, já sob o domínio castelhano, continuaram a lutar pela independência de Portugal.

O milagre de Ourique foi fruto do aparecimento de Jesus Cristo a D. Afonso Henriques como garantia da vitória em batalha tão desigual. Aparece relatado, pela primeira vez, na Crónica de 1419 de Fernão Lopes, que o achara escrito num texto mais antigo. De acordo com este mito, fora revelado a D. Afonso Henriques que Portugal era um reino de origem divina, fundado por Deus e que a sua independência assentava num direito superior ao direito humano. Daqui emerge a concepção de Portugal como País predestinado ao desempenho de uma missão providencial, a consumação do mito no futuro mediante o império universal, ou Quinto Império, profundamente espiritual.

Não obstante a narrativa de Frei Bernardo de Brito ter sido, de acordo com a maioria dos historiadores, elaborada com fins patrióticos durante a ocupação castelhana, “o seu teor literário não contradiz por si próprio a veracidade possível ou impossível da tradição” (A. Quadros).

In Eduardo Amarante, “Templários”, vol. 2

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